domingo, 14 de febrero de 2016
O quadro adormecido
Ana Quiroga.
In: El muchacho muerto (Buenos Aires: Fuera del
río, 2014), pp. 15-19
Tradução: Idelber Avelar
Um jovem pintor
demora dois anos para delinear a forma perfeita de uma mulher imaginada. A
mulher cochila em uma rede de vime com um livro entre as mãos. O livro, de capa
vermelha e aberto pela metade, está a ponto de cair das pernas da mulher. O
vestido branco, ou seja, uma dobra do vestido branco, não permite que o livro
caia.
Por anos, o quadro
fica a resguardo de olhares alheios devido à impopularidade do jovem pintor,
que não frequenta mestres nem círculos de belas artes.
O jovem pintor tem
que se mudar: o aluguel é caro demais para esses dois quartos lotados de telas.
Um robusto empregado de uma empresa de transportes levanta o quadro no ar: um
vizinho que o vê lança um grito e o detém.
Acontece um breve
escândalo na rua.
O vizinho, um
executivo de meia idade, garante que a mulher do quadro é sua esposa, não setrata (como no livro de Edwards) de nenhuma parte íntima de uma mulher sem
rosto, mas da cara de sua esposa, a idêntica atitude de sua mulher – que
desapareceu depois de uma estranha doença –, a nítida imagem da espreguiçadeira
de vime na qual descansava entre leituras. O vizinho aduz, em nome de sua
pequena de dez anos que ficou sem mãe, que o jovem pintor deve dizer quando sua
mulher posou para ele, como ele a conhece, se sabe onde ela se encontra.
O juiz, o
secretário do tribunal, três advogadas, a empregada que bate à máquina
observam, a cada tanto, em êxtase, a mulher do quadro no meio da sala. Dá a
impressão de que a mulher, que é belíssima, vai acordar a qualquer momento.
O mais curioso – o
juiz sussurra ao secretário do tribunal – é que meus olhos vão direto para o
livro que vai cair e quase não posso tirar o olhar da dobra do vestido acima do
joelho dessa mulher que me perturba até quando estou só dormindo.
O fato é tão
estranho que chama a atenção da imprensa. Jovem sequestrador pinta a vítima antes
de fazê-la desaparecer. Artista perverso assassina sua amante e depois a
imortaliza. Ainda não foi encontrado o cadáver da mulher que lia antes de ser
assassinada. Lia? Dormia? E se por acaso já estava morta?
A imagem do quadro
se torna celebridade. Um expert crítico de arte reconhece, não sem certo
desdém, que o quadro é magnífico.
O jovem pintor não
é declarado culpado de nada, não aparecem as provas, não há testemunhas nem
indícios exceto a inquietante parecença da mulher que sumiu com a mulher que
dorme no quadro.
O museu nacional
organiza a primeira mostra de quadros do jovem pintor que subiu à fama pela
porta de trás. Seus quadros superam as expectativas da crítica mesmo que a
figura da mulher que dorme seja a obsessão do público.
O jovem desdenha as
apresentações em coletivas de imprensa mas em silêncio sabe que o aplaudem.
Durante três meses,
quase um terço da cidade desfila por uma sala iluminada pela beleza da mulher
do quadro; as visitas fazem íntimas apostas sobre se eram amantes, se a mulher
está escondida em algum lugar, como ela abandonou sua filha – que já tem doze
anos – e, assustados com a intriga, se o livro detido pela dobra do vestido não
vai um dia cair no chão, na hora em que a mulher acordar.
Um milionário
estrangeiro faz ao jovem pintor uma oferta pelo quadro. O jovem pintor foge de
Buenos Aires e vai embora – assim como o quadro – para Nova York: eles vão por
caminhos separados. Ele é um jovem
pintor aclamado e díscolo, com conta em dólares, e o quadro vai como carga,
enobrecido por cuidados extremos e um seguro poderoso.
Em Nova York
repete-se o sucesso: a história da mulher desaparecida o precede e desperta
ânsias e suspeitas. Uma semana antes de o quadro ser retirado da mostra que o
tem como estrela, um velho pintor dinamarquês acusa o jovem pintor de plágio,
desafia-o com altivez e faz chegar, de uma velha loja, cheio de pó, um quadro
que de tão parecido acaba sendo o mesmo, com datas muito anteriores de
elaboração e exibição em uma ignota galeria de Copenhague.
De Nova York o
murmúrio chega até a Europa.
O pintor
dinamarquês conta que um amigo em Odense, inspirado na mulher de seu quadro,
escreveu um romance muito breve em que narra a história de um pintor
sul-americano que fugia com a mulher de um vizinho e a pintava antes de
matá-la. Com habilidade, o protagonista do livro escondia o corpo da mulher que
havia amado e, com o tempo, se casava com a filha dela, quando a jovem estava
por completar vinte anos.
Até Buenos Aires
acodem os ecos da tragédia.
O pai da menina –
que completou dezesseis – embarca para Tóquio aceitando um emprego de gerente.
Vigia a filha dia e noite. É inútil que anos depois tente impedir que ela
visite o pintor latino que vive nas imediações do Rio Meguro e cuja auréola de
mistério, morte e perversão o tornou fascinante entre os boêmios estrangeiros.
A menina foge com
ele. Eles se casam. Ela tem pouco mais de vinte anos. No dia do casamento, o
livro desliza pela dobra do vestido e cai.
O quadro, como a
mulher, desapareceu.
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